Mirada nas Eleições: Populismo na América Latina

Imagem: Foreign Policy

Nessa era em que nos encontramos cheios de informação, fica muito fácil se confundir com a quantidade de dados e possibilidades de acesso a esses dados. Com isso, se torna cada vez mais comum nos depararmos com o chamado negacionismo epistêmico, conceito criado por Lenio Streck, jurista brasileiro, em que o negacionismo ao significar negar a realidade, o negacionismo epistêmico consiste então em negar conceitos e estudos já consolidados e comprovados, ao explicá-los de forma errada ou muito simplista, ou quando estes conceitos são utilizados em contextos distintos do qual este foi criado para ser aplicado.

Por isso, como estamos em período eleitoral, a utilização de argumentos e conceitos em discursos, podem ser muito bem distorcidas em vantagem própria ou para desestabilizar a oposição. Então hoje será abordado um conceito do qual já sofreu esse tipo de distorção que é o tão conhecido Populismo. Porém, o enfoque deste conceito será aplicado a realidade da América Latina, principalmente no Brasil, tendo em vista que assim como um conceito pode ser distorcido ele também pode (e deve) ser adaptado para poder ser aplicado nas diferentes realidades com a sua devida finalidade. 

Isso porque devido aos processos de colonização dos territórios, se concretizou a colonialidade do saber (além da colonialidade dos corpos), em que a produção do conhecimento, sempre partia de uma visão superior europeia sob uma perspectiva subalterna e atrasada dos povos colonizados. Dessa forma, a maior parte do que conhecemos e estudamos, é sempre sob esta visão, a visão eurocêntrica e, por isso, é extremamente necessário entender a história de cada povo, a partir de suas especificidades (Quijano, 2005). 

Dito isso, é preciso entender que o conceito do Populismo foi desenvolvido por europeus para caracterizar a realidade de um movimento russo que ficou conhecido como Narodnik e depois, foi adaptado pelo autor Octavio Ianni (1991) para se entender esse fenômeno na América Latina, tendo em vista que a partir das suas diferenças históricas, esse conceito desenvolveu também características e significados específicos. 

O movimento Narodnik, ficou conhecido pela organização revolucionária no Império Russo, a partir da década de 1870 (bem antes da Revolução de fato) e se fortaleceu na virada do século com a divisão do debate entre bolcheviques e mencheviques. O nome Narodnik, significa ir ao povo, e esse movimento se tornou fundamental, pois buscou a interlocução com a obra de Marx e a sua prática política (Ianni, 1991).

Ele foi muito importante, pois rompeu com a fala de Marx de que “o capitalismo é um mal necessário”, no sentido de que é preciso passar pelo capitalismo para que, no exercício dos modos de produção, o operário pudesse ter consciência da sua condição de classe e, assim, através de um movimento dos trabalhadores fosse possível iniciar a socialização dos meios de produção que levaria a revolução contra o sistema capitalista. 

Por isso, os países que não possuíam o capitalismo avançado (que naquela época significava ter um país industrializado), não “teriam como” fazer a revolução pela falta da classe operária, o que era o caso do Império Russo totalmente feudal e agrário. Assim, os Narodniks desenvolveram uma resposta para esse impasse ao criarem um movimento camponês que buscava de fato ir ao povo e agregar as bases populares camponesas que através de uma articulação política iriam construir um processo revolucionário, "pulando" essa etapa capitalista (Ianni, 1991). 

Nesse sentido, o movimento começou a organizar os camponeses em Comunas e passam a estabelecer um modo de produção comunitário e agrícola, a partir do qual se consolidaram as bases para uma articulação política mais incisiva que depois se tornou a base da prática revolucionária. Desse modo, é esse modelo de organização política que enfatiza ou que privilegia a organização dos setores populares com o objetivo de produzir mudanças drásticas. 

No entanto, Essa característica do populismo russo de movimento camponês, não aparece no contexto da América Latina, porém, possui algumas similaridades. Assim, conforme Ianni (1991), o populismo (clássico) na América Latina, em suma, pode ser definido como:
"uma estratégia política empregada pelas burguesias industriais para forjar alianças com as classes subalternas contra as oligarquias agrárias" 
Então sobre o Populismo na América Latina, o destaque se dá na particularidade da aliança entre classes heterogêneas, antagônicas ou hostis, que foi representado pela aliança da burguesia industrial recém-formada no cenário urbano da qual precisava “do aval” da classe trabalhadora, também recém-formada na indústria jovem que estava em desenvolvimento, para se unir contra um inimigo em comum que seria o "ancien régime" da América Latina, ou seja, a oligarquia agrária. 

Essa união seria algo impensável de acordo com o marxismo clássico, pois, a luta de classes caracterizava o antagonismo irreconciliável entre burguesia e proletariado. Porém, na América Latina essa articulação entre classes sociais hostis ocorreu contra a classe dominante em nome de um interesse maior, que era sair da condição de países subdesenvolvidos através da industrialização que garantiria a independência econômica no sistema internacional.

Com isso, enquanto o movimento Narodnik se caracterizou como anticapitalista, na América Latina, o populismo se voltou para fazer o capitalismo se tornar mais eficiente, tendo em vista que elaborou o projeto nacional-desenvolvimentista para industrializar os países do continente. Assim, para o populismo funcionar, é preciso do "aval" popular para se estabelecer a mudança drástica no modo de produção consolidado. Na Rússia previa a revolução, porém, na América Latina, a ideia foi promover a industrialização através do Processo de Substituição de Importações. 

Dito isto, é preciso entender o porquê do conceito populismo na América Latina ser distorcido em alguns discursos. Essas distorções ocorrem, pois, as pessoas que fazem algumas análises simplistas, confundem as características do regime populista com o político populista, na medida em que o regime significa a aliança apresentada acima e o político significa o estilo de liderança baseada na atração pessoal de um líder e na fidelidade pessoal a ele.

Nesse sentido, para ser um político populista é preciso ter pelo menos três características:
  • Personalismo: se confunde como sinônimo de populismo, porém, o personalismo é o político (e não o regime) que usa o seu carisma para realizar um tipo de assistencialismo, ou seja, "dá um pouco e ganha muito mais em troca".
  • Liderança Carismática: seria a clássica tipologia de liderança, conforme Max Weber, ao mencionar que esse seria uma das formas de liderança política da qual se apoia na atratividade e na fidelidade pessoal.
  • Retórica: a arte de argumentar e discursar com braveza. 
Sendo assim, estas são as características de um político populista, não da organização política popular, tendo em vista que o personalismo, carisma e retórica de um líder não garante por si só, a aliança necessária entre as classes heterogêneas que é o que funda o movimento popular (populismo) na América Latina. 

Para exemplificar, os governantes que entraram para a história da América Latina ao serem os principais líderes que impulsionaram o projeto nacional-desenvolvimentista em seus países foram Getúlio Vargas no Brasil, Juan Carlos Perón na Argentina e Lázaro Cárdenas del Río no México que acabaram por criar o Varguismo, Peronismo e Cardismo, na medida em que impulsionaram a industrialização através da aliança consolidada entre burguesia e proletariado.

No entanto, atualmente o termo populismo vem sendo utilizado para analisar processos bem distintos dessas articulações clássicas que ocorreram na América Latina, passando a ser utilizado mais como uma caracterização, ou seja, como um adjetivo do que como a conceitualização de um fenômeno. Com isso, passou-se a colocar juízo de valor no conceito para caracterizar um líder populista, que na maior parte das vezes é visto como algo pejorativo.

Contudo, conforme Ernesto Laclau (2013) a necessidade de vinculação aos setores populares é algo inerente à política, principalmente, na América Latina, uma vez que esses setores populares são em números, o setor mais relevante no cenário político de seus países. Por isso, nesses períodos eleitorais é mais do que importante saber diferenciar o que é um regime populista de um líder populista, na medida em que o político pode praticar o clientelismo, ou seja, buscar apoio popular através de práticas não democráticas (troca de favores), mas o regime e o governo como um todo, não.

Assim, o ato de usar o populismo como um adjetivo pejorativo, atualmente vincula um governo à políticas macroeconômicas que muita das vezes são criticadas, em razão do aumento com gastos sociais e a tendência inflacionária que esses gastos trazem, apresentando isso como uma má administração dos recursos feita por políticos interessados (exclusivamente) no fortalecimento do seu nome e do seu carisma, ou seja, objetivos descaradamente eleitorais (evidenciados em governos tanto de esquerda como de direita).

Além disso, essas análises tendem a vincular o populismo ao enfraquecimento das instituições democráticas, em que os governos podem extrapolar a esfera de atuação do Executivo e concentrar a atuação do poder na figura da liderança. No entanto essas análises se tornam simplistas por atrelar o populismo ao tipo de política macroeconômica e não ao fundamento teórico que é a aliança entre classes hostis. Por isso, essa visão poderia ser considerada como “um novo populismo”.

Nesses casos, podemos citar como exemplo, os casos da liderança de Donald Trump e Jair Bolsonaro e para maior ilustração, podemos citar duas figuras que são chamadas de populistas na América Latina de forma pejorativa, mas que em um dos casos a liderança nem exerceu um regime populista que é o caso de Hugo Chávez na Venezuela em que este ao ser eleito, rompeu com a elite nacional quando promoveu uma "caça às bruxas", que criou uma oposição extremamente forte contra o governo Chávez. 

Então na Venezuela houve, na verdade, uma polarização muito grande na política, tendo em vista que Chávez não articulou o interesse das classes e, com isso, ele acabou aumentando as tensões políticas. Dessa forma, taxar o governo de Chávez de populista, vai totalmente contra a base teórica do conceito, utilizando o termo apenas como um adjetivo.

Já no Brasil, com o exemplo de Lula, podemos dizer que foi aplicado um regime populista, no sentido de que, além das características de um líder carismático, a principal característica do governo de Lula foi exatamente a preocupação em articular os interesses entre as classes hostis que era o empresariado e os movimentos sociais. 

Dessa forma, para não cairmos na armadilha do negacionismo, fique sempre atento em separar o tipo de liderança, do tipo de governo que o líder consegue articular. Por isso, esse momento eleitoral é muito importante, para cada um, enquanto eleitor, saber analisar quais são as propostas de um partido, pois, a união de classes heterogêneas em nome de um bem maior não é necessariamente algo ruim, mas, o apoio extremo em apenas uma liderança que se apoia apenas em uma classe, pode ser catastrófico. 

Por: Samara Oliveira

Referências Bibliográficas:
IANNI, Octavio. A formação do Estado populista na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2º edição, 1991.
LACLAU, Ernesto. A Razão Populista. São Paulo: Editora Três Estrelas, 2013.
QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. In: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Edgardo Lander (org.). Buenos Aires: CLACSO, setembro de 2005, pp. 117-142.

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