A Cultura e o Lugar de Fala

Reminder: An Army vet suggested Colin Kaepernick kneel during anthem
Imagem: Marcio Jose Sanchez. Fonte: The Associated Press

A cultura pela definição do Dicionário significa:
Um conjunto dos hábitos sociais, das manifestações intelectuais e artísticas, que caracteriza uma sociedade. 
No texto dessa semana, o objetivo é mostrar como essa definição de cultura, pode nos ajudar a entender como a cultura pode se interligar com ações que justificam ou criminalizam povos, raças e gêneros. Como autor deste texto, me declaro editor, artista, professor e negro. Provável que você, leitor, pode estar se perguntando neste momento, qual a razão para eu, escritor, autodeclarar todas estas coisas antes do texto. 

Para responder essa pergunta, é necessário dizer que este texto tem o objetivo de mostrar o quão importante é se conectar com você mesmo, com as suas causas, para saber como ajudá-las ou inspirá-las de maneira mais efetiva. Outra resposta para essa pergunta é que, atualmente, acaba se tornando necessário entender o seu lugar como ser político, para não interromper o discurso de outros, ao se equivocar quanto ao seu lugar de fala.

Ao entender o seu lugar de fala, é de suma importância entender que isto não te isola a falar apenas sobre isso, mas te dá o poder de analisar o que acontece no mundo a partir de sua perspectiva. Por exemplo, se você vem da periferia, você não deve falar apenas sobre isso, mas você pode falar sobre qualquer assunto de seu domínio, a partir da sua experiência e vivência. 

Não digo isso apenas para situações onde o aspecto econômico é mais evidenciado, digo para todas as situações onde o ser humano pode se ver de maneira diferente do outro, e isso torna o debate mais rico. Pois, duas visões diferentes sobre um mesmo caso, podem criar uma nova visão, que talvez seja mais vantajosa que o status quo anterior ao debate. 

Tina Fey and Amy Poehler | Time | Dana Edelson—NBC/Getty Images
Tina Fey and Amy Poehler | Fonte: Dana Edelson — NBC/Getty Images

Tina Fey, uma das principais artistas do meio humorístico no mundo, contou em uma entrevista, como foi a experiencia de ter sido a primeira mulher numa mesa de escritores para um dos programas mais tradicionais do humor mundial: Saturday Night Live.

Ela afirmou que foi muito assustador, ver que mesmo com uma população de maioria feminina em sua audiência, o programa jamais teve uma mulher com escritora antes dela e, para ela, a sua chegada nessa mesa foi histórica para as mulheres no humor e levou o seguinte questionamento nesta mesma entrevista: 
Como mulheres irão entender e gostar de nossos programas, se mulheres não escrevem nossos programas?
A partir deste questionamento levantado por Tina Fey, quero iniciar um debate sobre o papel da cultura, especialmente da arte, em debates anti-establishment e, como podemos, dia após dia, mudar esse cenário sociocultural com tantas lacunas no que tange a igualdade e liberdade. A cultura tem a responsabilidade de ser espelho para novas gerações, ela é o conjunto de ações que são repetidas e realizadas geração após geração. 

Assim como a chegada de Tina Fey na mesa de escritores mudou a história das mulheres no humor, de uma maneira positiva, a propagação de discursos imperialistas, pós imperialistas, racistas, fascistas e antidemocráticos também mudou o curso da história de seres humanos, impactando-a até o presente momento. 

A linha de pensamento ter passado da cultura para a política pode ser um pouco confusa e má interpretada, entretanto, devemos nos lembrar que viver já é um ato político, logo, ao nos expressarmos culturalmente, estamos realizando um ato político e representativo. Por isso, deve-se pensar na cultura como um agente político e social nas relações humanas. A cultura pode ser representada por diversas maneiras e, no texto de hoje, quero usar pilares importantes na cultura: o humor e o esporte.

O primeiro, já citado anteriormente, é um elemento essencial para entender como a cultura pode determinar a maneira como tal grupo social é visto pela sociedade, tendo em vista que a piada é geralmente realizada por meio do reflexo de ações realizadas pelo próprio humorista, ou presenciadas pelo mesmo. Dito isso, o humor pode ser entendido como a expressão cômica de um ato político: viver.

Como um jovem negro, na minha infância havia poucas referencias negras no humor e já havia um questionamento sobre o limite do humor. Muitos humoristas que admiro, afirmavam que o limite seria a liberdade do próximo, outros afirmam que o limite do humor é o silêncio, ponto pelo qual compartilho. Por muito tempo o silêncio foi vivido pela comunidade negra, dentro do humor, o personagem negro sempre foi carregado de diversos estereótipos, que o objetivavam pela sua aparência ou falta de inteligência, que é um pensamento altamente equivocado. 

Com a maior propagação das redes sociais dentro dos lares brasileiros, o humor se tornou mais acessível, assim, deu voz a pessoas silenciadas por um sistema televisivo e racista, que aos poucos puderam falar a língua de pretos e pobres. Esse movimento nas redes sociais, foi dando gradualmente cada vez mais disponibilidade à esses talentos e, simultaneamente expandiu o limite do humor, já que comunidades antes silenciadas pelo humor, agora tinham voz por meio dele. 

Gostaria de destacar o trabalho de artistas como Yuri Marçal , Thiago Ventura e Felipe Kot , que com seu talento e sensibilidade estão dando cada vez mais representatividade na luta contra o racismo, discriminação e fascismo. 

O segundo, representado principalmente pelo futebol em nosso país, é o reflexo total do poder do discurso e da cultura numa sociedade. Quantas vezes ouvimos histórias de superação de um atleta que saiu de uma periferia, de família algumas vezes desestruturada, que contra todas essas adversidades, venceu e hoje é uma estrela? Muitas vezes! Porém, o ponto aqui não é a sua vitória individual, mas justamente essas adversidades vividas pelo atleta. 

Como o texto afirma anteriormente, cada discurso, quando repetido, tem seus impactos na cultura e as adversidades nessa história do futebol, são o resultado mais claro - de meritocracia - que se pode analisar. Pois, o jovem sai de uma periferia, lugar que é discriminado por pessoas que vivem em regiões privilegiadas e que defendem um discurso meritocrático, mesmo vivendo em situações muito melhores que a do jovem atleta. 

Depois, o sucesso desses atletas é utilizado como um dos argumentos utilizados por pessoas de maior poder aquisitivo, afirmando que "se esse jovem, vivendo naquelas condições conseguiu, todos conseguem". O que é um argumento falho! Pois, dentro das comunidades, existem diversas histórias frustradas de jovens que não chegam ao profissionalismo em seu esporte devido a justamente esses impasses econômicos e sociais.  

LeBron James Wears Black and White 'Equality' Sneakers - Rolling Stone
Ned Dishman/NBAE | Fonte: Getty Images

Sendo assim, qual seria o papel do atleta de sucesso e, qual o seu lugar de fala na lutra contra a desigualdade econômica, social, de gênero e racial? O papel pode ser feito dentro de seu trabalho, como fazem Megan Rapinoe, Marta e LeBron James. Ou fora dela, através de seu discurso, mesmo que ele possa tirá-lo de sua área, como aconteceu com Colin Kaepernick. 

Kaepernick iniciou seus protestos contra a violência policial contra negros nos Estados Unidos, ao se ajoelhar durante o Hino Nacional, que prevê as partidas de todos os esportes norte-americanos. Quando se ajoelhou, mesmo sem dizer uma palavra, Colin foi contra todo o padrão estabelecido pela sociedade estadunidense, que é de total heroísmo e patriotismo, ignorando seu passado de cultura racista, que é perpetuado pela repetição de ações culturais, aceitas por grande parte da população branca do país. 

O fato de Kapernick e LeBron James "terem vencido na vida", não exclui o fato de serem negros e terem nascido em comunidades periféricas. E isso não os impede de comentar sobre políticas públicas nem deixar de criticar modelos políticos que desfavorecem a classe de onde vieram e pertencem. Seus patrocínios e plataformas, ao invés de calá-los, os impulsionam a crescer ainda mais, e a se tornarem exemplos para as próximas gerações. 

Esses atos, também culturais, podem nos ajudar a criar uma nova cultura, se a cultura racista nos calou por séculos, que a nossa geração cultive atos e culturas antirracistas para que, assim, possamos nos pertencer a um sistema mais igualitário, dia após dia. 

Texto: Daniel Araújo
Revisão: Samara Oliveira

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