Pandemia no Brasil e a (de)pendência de políticas industriais

Imagem: UOL

A pandemia do novo coronavírus gerou e ainda gera milhares de mortes (no exato momento em que estou escrevendo este parágrafo o número é de 625 mil mortes segundo o COVID-19 alert), milhões de infectados e um impacto econômico-financeiro de milhões de desempregados, milhares de empresas quebradas e trilhões de dólares em títulos de dívidas soberanas emitidos. Há de se reconhecer que a pandemia escancarou e motivou o debate dos mais diversos problemas presentes nas nossas sociedades e que, apesar de há muito tempo existentes, ficavam relegados a uma discussão mais pontual e, em geral, sem muita profundidade.

Como se o desemprego e o seu consequente impacto na renda e na capacidade de aquisição de itens básicos (alimentação, higiene e aluguel) para sobrevivência, somado ao maior número de pessoas em casa com mais tempo livre fizesse com que descobríssemos a pobreza, a desigualdade, o racismo, entre outros tantos problemas que nos afligem. Contudo, um aspecto que não foi muito abordado diretamente – segundo as pesquisas deste autor, com uma das honrosas exceções – foi a dependência brasileira de insumos importados capazes de responder à pandemia. Isso pode ser verificado aqui e aqui

Tal dependência, justiça seja feita, não é uma exclusividade do setor de insumos hospitalares, tampouco brasileira, atingindo, em especial nessa pandemia, países com industrialização consolidada de ponta como Itália, Reino Unido e até mesmo a Alemanha. Por isso, nada mais emblemático da dependência brasileira que o ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, anunciando  o fracasso do Brasil na tentativa de aquisição de insumos médicos da China para o enfrentamento ao COVID-19.

Fonte: Uol

Conforme Prates, Bichara e Cunha (2009), a China garantiu de maneira progressivamente crescente uma oferta internacional de produtos industrializados a preços baixos, sobretudo no século XXI, consolidando-se como a “fábrica do mundo” em um processo de globalização das cadeias produtivas. Todavia, com a pandemia elevando sobremaneira a demanda de equipamentos hospitalares e de proteção em um curto período de tempo, a não correspondência chinesa de tamanha demanda, somada a prioridade que a China deu a sua própria demanda deixou europeus e norte-americanos obrigados a encararem escolhas como quem iria viver e morrer pela insuficiência de respiradores e EPI’s. 

Essa situação despertou um debate – que já tem dado sequência a políticas pontuais de estímulo à reinternalizações de cadeias produtivas consideradas estratégicas – ainda em fase inicial que se propõe a discutir os limites da globalização das cadeias de produção, a importância da indústria no desenvolvimento soberano de uma nação e na capacidade de resposta de uma nação a seus problemas econômicos, sociais e eventualmente a conjunturas como a que presenciamos. 

Este autor acredita que o Brasil - considerando o estágio de nação em desenvolvimento, a forte restrição de EPI’s, respiradores, medicamentos que auxiliam na amenização dos efeitos do novo coronavírus (veja bem, eles existem e isso não se refere à cloroquina) e de testes, sobretudo nos meses iniciais da pandemia no país – não pode deixar de refletir sobre a possibilidade de uma política industrial consistente. Uma política que busque desenvolver os potenciais produtivos brasileiros, elevando o padrão de vida do povo e amenizando futuras restrições e vulnerabilidades em cenários extraordinários como este que estamos vivendo no futuro.

(In)felizmente, política industrial não é um conceito pronto e acabado, nem seus objetivos e instrumentos claramente definidos e limitados. Cabe declarar que tampouco este artigo pretende dar um conceito pronto ou apontar o caminho da redenção dos problemas nacionais, mas quem sabe, iniciar um debate fundamental em um momento oportuno. Podemos iniciar por uma definição de Krugman e Obstfeld (2009) de política industrial como
"um esforço do governo em desenvolver setores entendidos como importantes para o crescimento econômico do país dentro de uma perspectiva de uma estratégia de longo prazo de desenvolvimento nacional".
Já Chang (2004) vai de maneira mais enfática no ponto da seleção dos setores, defendendo uma “política industrial seletiva”, favorecendo deliberadamente alguns setores industriais para elevar a eficiência, expertise e produtividade. Dentro destes dois conceitos há um ponto em comum: a política industrial tem um grau intrínseco de discricionariedade – apesar de no desenvolvimento de suas obras, os autores divirjam do grau adequado desta – uma vez que ela escolhe os setores a serem beneficiados, sendo o principal ponto de detração das políticas industriais. 

Ferreira e Hamdan (2003) argumentam que a escolha dos setores se dá mais por pressões políticas de grupos bem relacionados com o governo e, que considerando a cultura patrimonialista em países como o Brasil, tende a aumentar a corrupção e estimula o rent-seeking, prática que consiste basicamente em manipulação política para aumentar as rendas de determinada atividade sem nenhuma agregação de valor aos produtos ou serviços fornecidos. 

Ainda em Ferreira e Hamdan (2003), os autores defendem uma típica linha mais tradicional e horizontal (beneficiariam todos os setores de maneira uniforme, ou mais uniforme) de política industrial, que consiste em correção de falhas de mercado e aperfeiçoamento institucional. Isso significaria orçamento e inflação controlados, estabilidade política, superávit em conta corrente (de maneira mais simples, seriam mais exportações de bens e serviços do que importações), um judiciário eficaz, regras do jogo claras, melhores níveis educacionais e de infraestrutura e programas com objetivo de aumentar a produtividade, a qualidade e a inovação. 

Já Rodrik (2004), que defende uma linha menos tradicional, muito próximo de Chang, em seu artigo Industrial policy for the twenty-first century, cita casos de sucesso de políticas industriais no Brasil (a saber, na siderurgia e aeronáutica), Chile, Coreia do Sul, México e Taiwan. Ele faz o comparativo entre casos de políticas industriais no Extremo Oriente e na America Latina, reconhecendo que o protecionismo latino-americano “errou a mão” e acabou por desenvolver muitas ineficiências e casos de rent-seeking

Ainda em Rodrikn (2004), buscando um caminho de desenhar uma política de desenvolvimento produtivo eficiente, o autor aponta para uma conciliação de políticas mais tradicionais (macroeconomia estável, instituições fortes, infraestrutura, educação e uma especial atenção à produtividade) e uma forte coordenação e articulação das políticas industriais. Ele reconhece o risco de cooptação do Estado através do desvirtuamento do mecanismo de coordenação das políticas industriais. Todavia, enumera possíveis mecanismos de governança desta relação, a fim de dirimir o risco mencionado anteriormente, como fóruns de coordenação, entidades de sociedade civil organizada e sindicatos patronais. 

Quando o assunto é política industrial, o debate é intenso, profundo e muito amplo. Respostas muitos firmes, projeções muito seguras e construções de pensamento muito sectárias, apesar de fáceis e até confortadoras de egos e almas, não levam a resultados muito promissores. O Brasil, ao decorrer da sua história, sobretudo nos últimos cem anos, experimentou muitas vezes pelo menos uma das três alternativas citadas na frase anterior. 

Obtivemos importantes êxitos, mas dolorosos fracassos, que talvez pelo longo período de depressão e/ou estagnação e suas respectivas consequências fez com que incorrêssemos na resposta firme e segura de que era melhor não termos política industrial. A conjuntura quase que nos obriga a pelo menos refletirmos mais uma vez no assunto, que não percamos essa oportunidade.

Por: Douglas Camargo

Referências Bibliográficas:
CHANG, H. J. Chutando a escada. UNESP: São Paulo, 2004.
FERREIRA, P.C.; HAMDAN, G. Política industrial no Brasil: ineficaz e regressiva. Econômica, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 305-316, 2003.
KUPFER, D. Política industrial. Revista Econômica, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, 2003.
KRUGMAN, P.; OBSTFELD, M. Economia Internacional: Teoria e Política. Pearson: São Paulo, 8 ed, 2009.
PRATES, D; BICHARA, J; CUNHA, A. O efeito contágio da crise financeira global nos países emergentes. Revista Indicadores Econômicos FEE, Porto Alegre, v. 37, n. 1, 2009.
RODRIK, D. Industrial Policy for the twenty-first century. KSG, Cambridge, MA, 2004.

Comentários