É realmente necessário correr?

Imagem: GET OUT (Universal Pictures, 2017).

No texto dessa semana, o Mirada Sureña tratará sobre os efeitos da caracterização de um estereótipo e como isso pode afetar algumas camadas sociais em nosso ambiente gregário, especialmente, o homem negro. É necessário afirmar que o seguinte texto não tem como objetivo colocar o grupo em questão como vítima maior ou tentar diminuir outras lutas contra a desigualdade, o Mirada tem como objetivo, justamente, dar voz e poder de fala para todos os grupos sociais e tem muito orgulho em fazê-lo. 

Conforme o dicionário Priberam, um dos conceitos que podem ser dados à explicação do termo estereótipo: 
Ideia ou conceito formado antecipadamente e sem fundamento sério ou imparcial = PRECONCEITO.
Ou seja, pode-se entender que o Racismo, por exemplo, é justificado pela repetição destas ideias ou conceitos criados sem fundamento, ou parcialidade, o Racismo tem sido cada vez mais estudado e conceituado e, a partir desse desenvolvimento de conceitos, tem se entendido que o mesmo está presente em diversas esferas, sejam elas estruturais, sociais, econômicas ou policiais.

Portanto, é possível encontrar maneiras de entender novas formas de repetição desses estereótipos preconceituosos partindo de diversos pontos de pesquisa e análise. No texto dessa semana, trabalharemos com o Racismo dentro do Cinema norte-americano e suas diferenciadas maneiras de atuação. A obra analisada no presente texto será o filme "CORRA!" dirigido e escrito pelo diretor negro Jordan Peele e utilizará o conceito de negrofilia para mostrar de que maneiras a obra critica a maneira com que o negro, especialmente o homem negro, pode ser e é estereotipado em algumas situações. 

Primeiramente, faz-se necessária a explicação do conceito de negrofilia. A palavra negrofilia é derivada da négrophilie francesa que significa amor ao negro. Era um termo que os artistas de vanguarda usavam entre si para descrever sua paixão pela cultura negra. Essa paixão a cultura negra, apesar de parecer inofensiva, traz muitos aspectos prejudiciais ao homem negro. Pensemos no futebol, por exemplo, o amor ao talento negro é limitado ao ataque, a criatividade e a habilidade em momentos decisivos do jogo, mas quando pensamos em algumas posições que exigem menos criatividade e\ou habilidade, como a de um goleiro, o homem negro não é visto como a melhor opção para tal local dentro de campo. Para saber mais, recomenda-se a leitura da obra "Quem tem medo do feminismo negro?" de Djamila Ribeiro. 

Sobre o filme (alerta de spoiler), a obra de Jordan Peele inicia com seus dois protagonistas convivendo em um ambiente que parecia comum ao casal, que era formado por um fotógrafo negro (Chris) e sua namorada (Rose), uma mulher branca. O primeiro diálogo mostra a preocupação de Chris sobre a sua primeira visita a casa da família de Rose, afirmando ter medo de sofrer algum preconceito ou negação por parte da família de sua namorada, pelo fato dele ser negro e, ela juntamente com a sua família, ser branca. 

Esta situação e diálogo inicial do filme, remete a obra de René Maran, "Un homme pareil aux autres" (Um homem como os outros), citada na obra "Pele Negra, Máscaras Brancas" de Frantz Fanon, que retrata o romance vivido entre Jean Veneuse, um homem negro e francês e Andréa Marielle, que é também francesa, entretanto, branca. A história trabalha com os impasses que o amor entre os dois encontrava, pois, Jean tinha muitos medos de não ser aceito pela sociedade e pela familia de Andréa. Em alguns momentos da obra, Jean, desolado por viver tal situação afirma:
"Quando se ama é preciso silenciar,
esconder o amor se possível de si próprio, 
eis a melhor solução".
Ao buscar a aceitação da família de Andréa, Jean escreve uma carta para seu irmão e este reponde Jean da seguinte forma: 
"Em uma palavra, você é realmente um dos nossos. Acho que talvez você próprio não se dê conta disso. Saiba então que você é um francês de Bordeaux. Meta isso na sua cachola. Você não sabe nada dos antilhanos, seus compatriotas. Eu ficaria surpreso se você pudesse se entender bem com eles. Aliás, os que conheço não parecem nada com você. De fato, você é como nós. Você é “nós”. Suas reflexões são as nossas. Você age como agimos, como agiríamos. Você se julga — e todos crêem em você — preto? Está errado! De preto você só tem a aparência. No mais, você pensa como um europeu" 
Neste momento, percebe-se que há sim uma aceitação por parte do irmão, mas, o mesmo deixa claramente uma visão racista em relação ao homem negro, condicionando a aceitação do romance ao fato de Jean não pensar, agir ou viver como um negro. É neste momento que volto a análise do filme de Jordan Peele e poderemos perceber ainda mais, como a obra se utilizou de textos de René Maran e Frantz Fanon para mostrar como a negrofilia, juntamente ao racismo, pode e afeta homens negros na nossa sociedade antiga e atual. 

Ao chegar na casa dos Armitage (família de Rose), Chris sente um certo desconforto natural quando se chega a um local desconhecido, mas nada que o preocupasse primeiramente. Entretanto, quando se inicia um diálogo mais longo com seu sogro, Chris percebe um discurso passivo-agressivo ao ouvir que a família Armitage era grande apoiadora da candidatura de Barack Obama, mostrando assim um caráter liberal e progressista, mas ao mesmo tempo, mostra também uma certa frustração com homens negros.
quando é contado a história de seu avô, que havia perdido uma corrida contra Jesse Owens, um atleta americano de atletismo e quatro vezes medalhista de ouro nos Jogos Olímpicos de 1936. 

A partir desse momento percebem-se dois pontos importantíssimos para esta análise: 
  1. Há um ressentimento em relação as vitórias do povo negro;
  2. há uma admiração pelo corpo do homem negro. 
Um segundo ponto do filme para a nossa análise, é uma festa entre os amigos da familia Armitage. Nesta sequencia de cenas, fica visivelmente clara a intenção de Jordan Peele em criticar a negrofilia, há uma intensa admiração pelo corpo e trabalho de Chris, admiração essa que na verdade era uma amostra de um produto colocado a leilão, produto este que era o próprio Chris. Pode parecer chocante, uma obra de 2017 tratar a venda de corpos de maneira tão clara. Porém, a critica apresentada por Peele é de suma importância, pois ela relembra uma realidade que jamais deve ser esquecida: POVOS NEGROS FORAM ESCRAVIZADOS. 

O terceiro ponto que se pretende trazer nesta análise é quando Chris percebe a situação em que está envolvido. O personagem descobre que esta dentro de um sistema racista e semi-supremacista (digo semi pois os Armitage não pensam que os brancos devem dominar o meio social em que vivem, mas pensam que para isso, suas ideias "brancas" devem ser introduzidas em corpos negros e, assim, teriam uma raça perfeita). 

Ao se dar conta disso, Chris tenta alertar Rose, mas, ele logo entende que sua amada namorada foi apenas a isca desse sistema. Chris permanece preso numa espécie de tortura psicológica, onde, aos poucos, os Armitage tentam convencê-lo e mostrá-lo o porquê dele estar envolvido naquela situação. O filme, traz finalmente um heroísmo por parte de Chris que de maneira extremamente inteligente e revoltante, consegue matar todos os membros da família Armitage e consegue fugir em vida de tal situação. 

Apresentados os aspectos do filme, gostaria de convidar o leitor para uma reflexão. Esta análise teve como objetivo mostrar como o racismo e negrofilia afetam o negro, pois, muitas das vezes, somos objetificados ou considerados algo inferior ou superior, em alguns aspectos, em comparação ao que realmente somos. A industria pornográfica trata o homem negro como uma maquina sexual e na arte, a mulher negra muitas vezes é esquecida e, quando lembrada, é também retratada de maneira extremamente objetificada. Mesmo que no caso de Jean (de René Maran), havia uma admiração por parte de seu cunhado e essa admiração era validada pelo seu comportamento "não-negro". 

Como homem e artista negro, já vivi, li e ouvi relatos de jovens negros que sofrem todos os dias apenas pelo fato de serem o que são: NEGROS. Algumas pessoas afirmam que quando vêem um negro no mesmo lado da rua, correm para o outro lado. Da mesma maneira já ouvi jovens negros afirmarem que estão cansados de seu sofrimento diário. 

O questionamento e reflexão que deixo para você, leitor, é realmente necessário correr? Correr para o outro lado da rua ao ver um jovem negro, correr da história racista que aconteceu, correr das bibliografias educativas que tem o único objetivo ensinar a sociedade atual sobre os muitos problemas que desafiam a ideia de uma possível igualdade? 

Não corra, LUTE. 

Texto: Daniel Silva

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