Direito na pandemia (parte I): O regime de teletrabalho

Imagem: SERJUSMIG

O ano de 2020 surpreendeu a todos com a pandemia da Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) que gerou várias transformações nas relações sociais e econômicas. Diante da situação enfrentada, inúmeras normas jurídicas tiveram que ser alteradas para se adequar e regular os desafios causados pela pandemia. 

O direito do trabalho foi uma das principais áreas a ser modificada, devido a necessidade de proteger os empregos e, ao mesmo tempo, garantir o cumprimento das regras de isolamento social. Nesta semana, falarei sobre está área do direito, e na próxima edição continuarei o debate sobre este assunto, porém, abordando as questões dos direitos humanos.

A principal medida indicada pelos especialistas ao combate do vírus é o distanciamento social, para evitar que se espalhe rapidamente e tenha um grande número de doentes e sobrecarga no sistema de saúde. Assim ações foram adotadas para alcançar maiores taxa de distanciamento, como o fechamento do comércio e de serviços considerados não essenciais. Porém, essas medidas resultaram em problemas na economia, que levou ao aumento do desemprego e fechamento de empresas, por exemplo. 

Diante desse impasse entre ações para reduzir óbitos e os efeitos econômicos, uma alternativa que passou a ser adotada é o teletrabalho, uma modalidade que permite que o empregado cumpra suas tarefas sem precisar sair de casa. O teletrabalho é uma modalidade de trabalho também chamada de trabalho remoto, trabalho a distância, home office, entre outros termos. Não existe uma conceituação única, fazendo com que o uso desses termos não seja preciso. Sua principal característica é o uso de Tecnologia de Informação e Comunicação (TIC), existindo diversas formas de teletrabalho. (ROCHA; AMADOR, 2018).

O importante não é achar um conceito definitivo, mas compreender as dinâmicas que norteiam esta forma de trabalho. O teletrabalho faz parte das mudanças nas organizações que buscam maior flexibilização do trabalho por meio das TICs. A flexibilização ocorre em várias dimensões, sendo uma delas a relação de emprego (pois, pode ocorrer o teletrabalho sem vínculo empregatício, sendo utilizado trabalhadores informais ou autônomos). 

Outra dimensão da flexibilização é no processo de trabalho que perde os limites temporais e espaciais, não existindo um limite bem definido de tempo e local de trabalho. Também ocorre uma flexibilização na realização do trabalho, sendo passado ao funcionário maior autonomia para administrar as tarefas a serem cumpridas (ROSENFIELD; ALVES, 2011).

O teletrabalho surgiu na década de 1970 nos Estados Unidos (onde é chamado de telecommuting [1]) e depois foi difundido ao resto do mundo. Sua origem está ligada ao desenvolvimento da tecnologia (como computadores e fax), que permitiu os trabalhadores realizarem suas tarefas em casa e manter comunicação com a empresa. 

O maior acesso à internet a partir de 2000 levou a um aumento da modalidade. Assim o desenvolvimento do teletrabalho está relacionado com a revolução tecnológica da informação – ou terceira revolução industrial – e ao surgimento dos sistemas de comunicação que permitem maior descentralização da produção e do trabalho (BOONEN, 2002). 

Mesmo existindo faz décadas, o teletrabalho só foi regulado no Brasil na reforma trabalhista de 2017. Antes apenas se tinha o artigo 6° da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que foi alterado em 2011 pela Lei n° 12.551 para dizer que não há distinção entre o trabalho presencial, o realizado na casa do funcionário e o trabalho à distância, desde que existam os requisitos da relação de emprego. 

Com a reforma trabalhista feita pela Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017, o teletrabalho passou a estar regulado na CLT por meio dos artigos 75-A ao 75-E. O teletrabalho é caracterizado no artigo 75-B como: 
A prestação de serviços preponderantemente fora das dependências do empregador, com a utilização de tecnologias de informação e de comunicação. 
O teletrabalho deve constar de forma expressa no contrato individual de trabalho, assim como as atividades que serão realizadas. É permitida a mudança entre o regime presencial ao regime de teletrabalho e vice-versa. Porém, as as regras sobre a alteração de regime são diferentes: A mudança do regime presencial para teletrabalho exige acordo entre empregador e empregado, já o contrário depende apenas da vontade do empregador, desde que respeite o prazo mínimo de transição de 15 dias (PEREIRA; ORSI, 2018).

A CLT define que a responsabilidade pelos equipamentos tecnológicos necessários para o trabalho e a infraestrutura adequada sejam previstas em contrato escrito. Gastos com eletricidade, compra de equipamentos e outros custos podem ser arcados pelo empregado, recebendo em troca um reembolso pelas despesas, que devem ser previstas no contrato de trabalho. Em relação à segurança e saúde no trabalho, o empregador deve instruir quais precauções o teletrabalhador precisa ter para impedir acidentes de trabalho e problemas de saúde. 

Já o empregado deve assinar um termo de responsabilidade no qual se compromete a cumprir as orientações que recebeu. Assim o teletrabalho é uma modalidade vantajosa para o empregador que deseja cortar custos que teria caso o empregado estivesse no regime presencial, além de transferir a responsabilidade por acidentes e doenças ao empregado, tornando a relação trabalhista desigual. 

Em 22 de março de 2020 foi publicada a Medida Provisória n° 927, tratando sobre medidas na área trabalhista para enfrentar o estado de calamidade e seus efeitos econômicos. Uma das medidas é a permissão ao empregador de adotar o teletrabalho para seus funcionários, sem necessidade de acordo com este ou registro prévio de alteração no contrato. A única obrigação é a notificação prévia ao empregado dentro de, no mínimo, 48 horas. As mesmas regras se aplicam para o retorno ao trabalho presencial. Tal medida diverge das regras que regulamentam o teletrabalho na CLT, que exigem acordo entre patrão e funcionário, além de registro em aditivo contratual. 

A MP também afirma que não será considerado como tempo de disposição ou de sobreaviso o período de uso de programas de comunicação que estejam fora do horário normal de jornada de trabalho do empregado. A MP não foi aprovada no Congresso Nacional dentro do prazo e perdeu sua vigência no dia 19 de julho, porém os acordos feitos antes do dia 19 continuam válidos. 

O Ministério Público do Trabalho fez uma Nota Técnica sobre a referida MP, apontando críticas e recomendando alterações. Uma das recomendações foi que o funcionário em teletrabalho só possa ser convocado para o regime presencial após o fim das medidas de contenção das autoridades de saúde ou se for uma atividade essencial que precise ser cumprida presencialmente. Entretanto, a recomendação não foi considerada pelo governo. 

Entre as vantagens do teletrabalho está a eliminação da necessidade do descolamento ao local de trabalho, a maior flexibilidade de horários para o empregado cumprir suas tarefas, maior contato com sua família e um ambiente mais confortável. Mas o teletrabalho em casa pode ter efeitos prejudiciais, ao misturar o ambiente profissional e domiciliar, afetando a estrutura familiar. 

Nem sempre o domicílio é um ambiente adequado para se realizar as atividades laborativas, podendo gerar estresse ao trabalhador e sua família. Também o maior tempo em casa não significa mais tempo com a família, pois o trabalhador pode ser sobrecarregado de tarefas, ocupando maior tempo no teletrabalho do que ocuparia no trabalho tradicional (BOONEN, 2002). 

Também deve se considerar os problemas para saúde mental que pessoas em isolamento são suscetíveis de adquirir. Devido ao estresse gerado pela incerteza da duração da pandemia, a limitação de movimento e o afastamento do ambiente social, sintomas como ansiedade e depressão surgem. O excesso de tarefas é outro elemento que causa prejuízo para saúde mental (PEREIRA et al, 2020). 

O teletrabalho se mostrou uma forma de manter os empregos dos trabalhadores e a produção econômica das empresas, reduzindo o desemprego e os danos econômicos causados pela pandemia. Permitindo os trabalhadores realizarem suas funções em casa, fortalece o isolamento social indicado desde o início da pandemia. Nesse sentido, conforme a publicação da MP n° 927 em março, a utilização do teletrabalho cresceu nas empresas, com perspectiva de que mesmo com o fim da vigência da MP e após o fim do isolamento social e o “retorno da normalidade”, o regime de teletrabalho continue sendo utilizado. 

Porém não se pode ignorar os riscos e problemas relacionados a essa modalidade de trabalho, como o aumento na exploração do trabalhador e problemas sociais devido a mistura do ambiente laboral com o familiar. Não existindo controle de jornada, o teletrabalhador pode ser sobrecarregado com tarefas e metas muito altas, com efeitos danosos para sua saúde física e mental. 

Essas críticas não significam que a legislação deve retornar como estava antes da pandemia, na verdade, com as mudanças, surgem novas questões que devem ser enfrentadas na busca da melhoria das regras e a prevenção de abusos aos trabalhadores. Portanto, continuaremos esse debate na segunda parte deste texto.

Por: Alexander Kubiak

Notas:
* Esse texto é uma versão resumida de artigo originalmente publicado em Anais do Evento: I Seminário On-line de Estudos Interdisciplinares. Disponível em: <https://doity.com.br/anais/iseminarioonlinedeestudosinterdisciplinares/trabalho/142528>.

[1] O termo telecommuting foi criado por Jack Nilles, em 1976, ao publicar The Telecommunications Transportation Trade Off

Referências Bibliográficas:
BOONEN, Eduardo Magno. As várias faces do teletrabalho. Revista Economia & Gestão, v. 2, n. 4, 2002. 
PEREIRA, Leone; ORSI, Renata. Direito Individual do Trabalho. In: ARAÚJO JUNIOR, Marco Antonio; BARROSO, Darlan (Coords). Reta final OAB conteúdo complementar: Reforma Trabalhista. 1ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.
PEREIRA, Mara Dantas et al. A pandemia de COVID-19, o isolamento social, consequências na saúde mental e estratégias de enfrentamento: uma revisão integrativa. Research, Society and Development, 9 (7): 1-35, 30/05/2020.
ROCHA, Cháris Telles Martins da; AMADOR, Fernanda Spanier. O teletrabalho: conceituação e questões para análise. Cadernos EBAPE. BR, v. 16, n. 1, p. 152-162, 2018. 
ROSENFIELD, Cinara L.; ALVES, Daniela Alves de. Autonomia e trabalho informacional: o teletrabalho. Dados Revista de Ciências Sociais, v. 54, n. 1, p. 207-233, 2011. 

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