Direito na pandemia (parte II): Os direitos humanos

Imagem: RevistaHSM

Direitos Humanos tem sido um termo bastante falado e ouvido no Brasil, porém muito mal compreendido pela maior parte da população devido a distorções geradas pela mídia e grupos políticos. Mais do que um conceito retórico vazio ou uma ideia defendida apenas por ONGs, os Direitos Humanos são previstos em nível internacional por meio de tratados e declarações, sendo resultado de uma longa história de luta política e discussão filosófica de vários séculos. 

Apesar de fazer décadas que o Brasil reconhece e tem se comprometido a garantir os Direitos Humanos, o país sempre enfrentou dificuldade em implantar medidas para que esses direitos fossem assegurados. Por causa disso o país sofreu inúmeras denúncias e mesmo condenações de órgãos internacionais, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Com a pandemia gerada pelo COVID-19 a situação se agravou de forma crítica, com a doença afetando principalmente grupos que já eram marginalizados antes do surgimento do vírus. 

Os Direitos Humanos são divididos em dimensões (ou gerações, como preferem alguns autores), sendo a divisão clássica em três dimensões (existem autores que falam de uma quarta ou até mesmo uma quinta dimensão). Essa divisão é histórica e teórica, não existindo prevalência entre uma dimensão sobre a outra. Todos os Direitos Humanos são necessários para garantir a dignidade do ser humano. 

Os direitos de 1ª dimensão são chamados de direitos individuais ou negativos, já que dependem principalmente do afastamento do Estado, servindo para limitar a interferência do governo nas vidas das pessoas. Por exemplo: o direito de liberdade de expressão para ser efetivo depende principalmente que o Estado não censure as pessoas (DIÓGENES JÚNIOR, 2012). 

Os direitos de 2ª dimensão são conhecidos como sociais ou positivos, pois dependem da ação estatal para serem efetivados, logo criam a obrigação ao Estado em cumprir funções. São exemplos, o direito à saúde e à educação, que para serem garantidos é preciso que o Estado ofereça o acesso a serviços de saúde e educação; sua omissão irá resultar que uma considerável parcela da população fique sem acesso a esses direitos (DIÓGENES JÚNIOR, 2012). 

Já os direitos de 3ª dimensão são denominados de direitos difusos, pois tratam de temas que não se restringem ao indivíduo ou a grupos sociais delimitados, mas abarcam populações indeterminadas, ultrapassando fronteiras e mesmo gerações como, por exemplo, o direito ao meio ambiente (DIÓGENES JÚNIOR, 2012). Nesses casos é necessária também a ação do Estado, junto com a sociedade e empresas para que esses direitos não sejam violados. 

No entanto, existe uma tensão entre a 1ª dimensão de direitos com as outras dimensões, pois estas dependem da maior ação estatal, enquanto aquela busca principalmente limitar o poder do Estado em interferir na vida privada dos cidadãos. Por isso, deve existir uma ponderação quando o assunto são os Direitos Humanos, não existindo uma hierarquia de direitos mais importantes ou possibilidade de um direito excluir o outro. Por exemplo: o direito de propriedade deve ser equilibrado com o direito ao meio ambiente, o direito à segurança com o direito à liberdade, e assim por diante. 

O principal documento internacional sobre Direitos Humanos é a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, porém, sua importância é principalmente simbólica, visto que não é considerado um tratado e os países que assinaram não são obrigados juridicamente a cumprir o que está disposto. Outro documento importante é a Declaração Americana de Direitos Humanos (também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica), este sim é um tratado internacional que entrou em vigor em 1978 e que é a base do sistema de proteção de Direitos Humanos no continente americano. 

A Constituição Federal de 1988 (norma mais importante no Brasil) internalizou no direito brasileiro vários Direitos Humanos, que estão em sua maioria ao longo do artigo 5° até o artigo 17. Assim, tanto por meio de tratados internacionais, quanto pela Constituição Federal, o Brasil se compromete (na teoria) a proteger os Direitos Humanos dos brasileiros e estrangeiros dentro do território nacional, algo que não ocorre de forma completa na prática. 

Na pandemia da COVID-19 surgiram vários questionamentos envolvendo os Direitos Humanos. O que mais se destaca obviamente é a efetividade do direito à saúde e à vida, que são diretamente ameaçados pela doença. Mas também há a discussão legítima de até onde pode ser limitado o direito de liberdade de ir e vir, de reunião e de trabalhar das pessoas. 

Algo que precisa ser compreendido é que mesmo os Direitos Humanos não são absolutos, podendo sofrer restrições e limitações dentro de certas condições. Dessa maneira, direitos como a liberdade de locomoção e de reunião podem ser limitados pelo Estado, devendo, entretanto, seguir os critérios para evitar a arbitrariedade estatal e abusos por parte do governo. 

Qualquer limitação de direito deve ter justificação, tanto jurídica, por meio uma norma que a permita, quanto lógica, já que proibir a locomoção das pessoas afirmando simplesmente “porque um decreto proibiu” fere a democracia, no qual as limitações de direitos devem ter motivações razoáveis. 

Para os Direitos Humanos serem efetivados e não se tornarem uma abstração teórica, é preciso reconhecer os problemas da nossa sociedade e os desafios enfrentados pelos grupos mais vulneráveis, caso contrário os Direitos Humanos serão privilégio de uma parcela da população. Assim, na pandemia temos que considerar os perigos enfrentados pelos grupos mais vulneráveis, como os idosos e os indígenas. 

Foi noticiado em jornais um protocolo técnico da Secretária de Saúde do Rio de Janeiro que definia como os médicos deveriam proceder para priorizar o acesso aos leitos dos hospitais, quando não houvesse vagas suficientes para todos. Os pacientes mais velhos teriam menor prioridade, como se fossem cidadãos descartáveis, podendo ser deixados para morrer. 

Esse protocolo técnico, além de demonstrar a incapacidade do governo de assegurar o direito à saúde para toda a população, também é ilegal, pois o Estatuto do Idoso (Lei n° 10.741 de 2003) assegura atendimento prioritário a serviços de saúde (com maior preferência aos idosos maiores de 80 anos) e proíbe tratamento discriminatório (SILVA, 2020). 

A proteção da saúde dos povos indígenas é outro desafio na pandemia. Muitas populações indígenas já sofriam antes da pandemia com problemas como falta de acesso ao sistema de saúde e insegurança causada por ameaças de perdas de seus territórios. Com o vírus se espalhando pelo interior do país, as aldeias também foram atingidas, apresentando a doença com maior taxa de mortalidade nesses locais. 

O isolamento geográfico dificulta o acesso de materiais como medicamentos e equipamentos de proteção, além da falta de profissionais da saúde (FLOSS; FRANCO; MALVEZZI; et al, 2020). Para assegurar a proteção dos direitos dos indígenas é preciso um plano de enfrentamento amplo e bem estruturado por parte do governo, que reconheça as especificidades dessas populações. Dessa maneira, é necessário medidas para garantir de forma concreta os Direitos Humanos para todos no país, não aceitando que várias parcelas da população tenham seus direitos deixados em segundo plano. 

Para isso, é necessária a conscientização da sociedade sobre o que são realmente os Direitos Humanos e sua importância na vida cotidiana, para que assim possam cobrar dos governantes os seus deveres com a população. O Estado brasileiro (em suas várias esferas, desde municipal até federal) deve tomar todas as ações necessárias para efetivar os direitos de toda a população, independentemente da idade, sexo, condição econômica ou etnia. 

As dificuldades geradas pela pandemia não podem servir de desculpa para a omissão estatal em proteger direitos fundamentais. Ao mesmo tempo, as ações do Estado devem respeitar os limites impostos pelos direitos individuais, não se podendo aceitar a adoção de medidas arbitrárias em nome do combate à pandemia. 

Por: Alexander Kubiak

Referências Bibliográficas 
DIÓGENES JÚNIOR, José Eliaci Nogueira. Gerações ou dimensões dos direitos fundamentais?. Âmbito Jurídico, Rio Grande, XV, n. 100, p. 571-572, 2012.
FLOSS, Mayara; FRANCO, Cassiano Mendes; MALVEZZI, Cecilia, et al. A pandemia de COVID-19 em territórios rurais e remotos: perspectiva de médicas e médicos de família e comunidade sobre a atenção primária à saúde. Cadernos de Saúde Pública, vol. 36, 2020.
SILVA, Isaías Henrique. 'Escolha de Sofia' na Covid-19 é ato ilegal. Revista Consultor Jurídico, 12 de maio de 2020.

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