Independência inconclusa e consciência de classe

 

Imagem: Quadro de Pedro Américo "Independência ou Morte" (1888). Fonte: Agência Brasil


Esse 7 de Setembro passou aqui para nos lembrar que estamos em quase 200 anos do dia da proclamação da independência, mas afinal, o que realmente fizemos de bom com isso? Precisamos refletir! A formação da América Latina como um todo, foi construída a partir de modelos eurocêntricos, ou seja, vindos de fora, e isso refletiu diretamente no desenvolvimento de um continente com estruturas institucionais que (na maioria dos casos) são estruturas que não combinam com a realidade da maior parte da população e das suas respectivas nacionalidades. 

Nesse sentido, mesmo após os processos de independência iniciados no continente no século XIX, na virada do milênio, ainda podemos identificar o que Luis Vera (2011) chamou de “a independência inconclusa”. Mas, inconclusa em que sentido? 

O antropólogo Pierre Clastres (1974) nos lembra que “o Estado, dizem, é o instrumento que permite à classe dominante exercer sua dominação violenta sobre as classes dominadas” (p. 14). No entanto, ao analisar a América Latina, ele conclui que que esta premissa não se aplicou nos grupos étnicos latino-americanos, uma vez que esses povos, não passaram por uma liderança coercitiva no que diz respeito a suas comunidades do período de pré-colonização, mas sim, por lideranças indígenas comunitárias.

Isso significa que o modelo institucional de Estado, foi transplantado para a América Latina, sem as devidas adaptações para a realidade dos que ali habitavam. Assim, entendendo que (conforme o modelo europeu) o Estado atua como ente organizador do modo de produção capitalista e que, o modo de produção na América Latina era diferente do modo originário, o sociólogo Florestan Fernandes (1975), nos mostra o impacto de ter tido uma estrutura econômica distinta do capitalismo, nas classes que se originaram na América Latina.

Com isso, é possível identificar que a formação das classes sociais no continente, também foi diferente do modelo originário. Para Fernandes, as classes do continente latino-americano são de caráter distinto do modelo original (europeu), devido à ausência de um período de industrialização nacional que, no capitalismo originário, ocorreu com as chamadas revoluções burguesas.

Nesse momento, as burguesias nacionais foram protecionistas por um período em relação a sua indústria nascente, fazendo com que a indústria que ainda não era competitiva, prosperasse. Contudo, na América Latina, isso não ocorreu, devido ao fato de a industrialização ter sido levada a cabo por agentes externos e essa é a diferença que afetou a formação das classes sociais no continente, tendo em vista que, conforme Fernandes, a burguesia dessa região sempre agiu como “sócia” da burguesia européia ou estadunidense.

Assim, a fonte de riqueza dessas classes se apresentou em uma relação paradoxal, pois, a condição de capitalismo periférico dependente, em razão de que a divisão (desigual) do trabalho, favorece a organização econômica latifundiária que existe na América Latina e, ao mesmo tempo, limita que os países como um todo, prosperem enquanto unidades econômicas. Logo, estes países nunca sairão da sua posição periférica e dependente, em função de que isso garante os privilégios das elites latino-americanas.

Por esse motivo, as independências na América Latina são inconclusas, pois foram apenas de caráter político, e não econômico, uma vez que a maior parte das classes que compõem o continente, não possuem a chamada “consciência de classe”. Para entender o que seria essa consciência, precisamos voltar ao pensamento clássico marxista, em que Marx definiu as classes de maneira diluída em suas obras e não em uma em específico. Porém, na obra "O 18 de Brumário de Napoleão Bonaparte" (1852) ele define o que seria uma classe como:
[na medida em que] milhões de famílias vivem sob condições econômicas de existência que separam seu modo de vida, seus interesses e a sua cultura daqueles das outras classes e as colocam em oposição hostil a essas classes, elas formam uma classe [alheia] (p. 123). 
Essa é uma definição valorativa, no entanto, determina um ponto central para o debate sobre classes sociais que é a pluralidade, ao apontar uma classe em oposição a outra, pois não tem como falar em classes social no singular, já que se todos fossem de uma mesma classe, não haveriam classes! 

Mais adiante nas obras de Marx, esse termo aparece como a luta de classes, uma vez que para Marx, a história, É a história da luta de classes, no sentido de que essa oposição entre as classes que faz com que o capitalismo se define enquanto fator social. Por isso, a questão da oposição hostil que caracteriza a divisão entre as classes. Com essa definição, Marx também declara que são as relações econômicas de existência, que separam os indivíduos (do modo de vida, dos interesses e da cultura) que formam as classes sociais. Assim, a estrutura econômica reflete na superestrutura política, o Estado, o seu modo de produção. 

A partir disso, se criam 2 estruturas nessa ideia central de classes para Marx:
  1. Polarização: a situação irreconciliável entre as duas classes que compõem o capitalismo. É a base do que vai se colocar enquanto luta de classes. Com isso, o estamento social (senhores vs. plebeus, servos vs. senhores, burguês vs. proletariado) no capitalismo, faz com que as classes sociais atinjam seu estado mais alto de maturação, que é essa posição hostil (de polarização) entre elas. 
  2. Classes fundamentais: a burguesia e o proletariado, no sentido de que com o desenvolver do capitalismo, o cenário societário seria resumido apenas nessas duas classes. Mantendo a relação entre os que possuem os meios de produção (burguesia) vs. os que vendem a força de trabalho (proletário). Para Marx, as outras classes como as classes médias e as pessoas do campo, iriam desaparecer, em razão de que parte da burguesia teria que se proletarizar, e essa conclusão aponta a polarização entre as classes, no sentido de que com o desenvolvimento do capitalismo, só sobrariam esses 2 pólos. 
Esses conceitos, ao serem aplicados em outras realidades, precisaram ser adaptados como no caso em questão, da América Latina, pois, até esse ponto as lutas políticas eram representadas de forma sindical, ou seja, representadas pelos partidos políticos e sindicatos. E como as pessoas que compõem os sindicatos são as classes (no sindicato dos comerciantes, estão os comerciários, no sindicato dos banqueiros, estão os bancários e por aí vai) você se encaixa em um sindicato, de acordo com a sua condição de classe na sociedade. 

No entanto, com o fenômeno dos movimentos Transclassistas, houve uma subversão daquilo que caracterizavam os sindicatos e os conceitos clássicos foram revistos pela teoria dos novos movimentos sociais, para entender o advento das lutas políticas identitárias que surgiram a partir da década de 1960 (BODART, 2018).

A diferença é que nesses movimentos, haviam a união entre grupos e indivíduos de diversas classes, que se uniam por bandeiras e pautas identitárias, por exemplo, movimento ambientalista, estudantil, LGBT, feminista, ou seja, são movimentos que têm uma pauta identitária e que teve condições de colocar no mesmo campo político, indivíduos que são de classes distintas. 

Assim, a questão da polarização enquanto situação irreconciliável entre as classes, foi repensado. Logo, a questão de que no capitalismo desenvolvido, só sobrariam as duas classes fundamentais, não se provou, tendo em vista que é possível identificar que ainda existem as outras classes como a classe média (que na verdade se fortaleceu em quantidade) e o mesmo para o campesinato que continua sendo uma classe importante para a prática capitalista.

Com isso, surge o conceito de consciência de classe, em que Georg Lukács (1923) analisa a questão de como se dá a transição entre a situação do indivíduo no modo de produção e sua participação política, uma vez que Marx já afirmava que não bastava o indivíduo ser proletário, ele deveria ter consciência da sua condição para que assim, pudesse assimilar sua posição política na sociedade. 

Ele apresentou isso como a classe em si e classe para si, em que o primeiro é a posição que determinado indivíduo ocupa no modo de produção e o segundo seria essa consciência que o indivíduo tem da sua posição no modo de produção. Desse modo, a consciência denota pertencimento e essa é a concepção que localiza racionalmente o indivíduo nas relações produtivas. 

Isso criou a possibilidade de entender como indivíduos que pertencem a uma classe, agem e defendem os interesses políticos de outra classe. Assim como se viu na América Latina, em que a burguesia e a classe média nacional, defendia os interesses das classes internacionais, em detrimento do desenvolvimento do próprio país, ou como as classes baixas, às vezes querem defender pautas da classe média ou da elite. 

Por isso, se essas classes tivessem a consciência de que se encontram em uma condição periférica e dependente, e que continuar defendendo interesse de classes econômicas diferentes  (sem uma pauta identitária) apenas as prejudicam, talvez a nossa independência poderia ter sido concluída.

Por: Samara Oliveira

Referências Bibliográficas:
BODART, Cristiano das Neves. Teoria dos Movimentos Sociais. Disponível em: <https://cafecomsociologia.com/teoria-dos-movimentos-sociais/>. Acesso em 09 de setembro de 2020.
CLASTRES, Pierre. A Sociedade Contra o Estado. Traduzido por Theo Santiago. Coletivo Sabotagem, 1974.
FERNANDES, Florestan. Classes sociais na América Latina. In: FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2ª edição, 1975, p. 33-122.
LA INDEPENDENCIA Iconclusa. Direção de Luis Vera, 2011. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=t7SmQsb3LMI>. Acesso em 18 de agosto de 2020.
LUKÁCS, Georg. História e Consciência de Classe. Traduzido por Maria Ermantina de Almeida Prado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 1º Edição, 2019.
KARL, Marx. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. Tradução e notas de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 1º edição, 2011.

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